A ESTALAJADEIRA
ENCENAÇÃO
ANTÓNIO DURÃES
[2004]
DE
CARLO GOLDONI
A ESTALAJADEIRA
La locandiera (1752)
A escolha de ‘’A Estalajadeira’’, uma peça de teatro escrita por Carlo Goldoni em 1750 (por volta dessa data), inscreve-se na vontade de desafiar um texto, em tempos, muitíssimo representado, mas que, nos anos mais recentes, tem estado esquecido, por razões que supomos saber:
a). foi (é) um texto representado segundo padrões que afirmaram um tempo e uma corrente estética que deixaram marcas profundas numa determinada maneira de representar, de respirar e de pensar a «coisa» cénica;
b). é, por isso, um texto suficientemente datado para que signifique um desafio a um qualquer encenador nos anos que correm e, por isso, um texto da possível «arqueologia teatral», mas com as características todas que julgamos fundamentais encontrar num texto desafiador;
Apesar disso, trata-se, segundo os especialistas, de um texto muitíssimo bem desenhado, que se inscreve na moldura da ‘’comédia de costumes’’ e esse, considerado injustamente um género menor da dramaturgia para alguma da intelectualidade portuguesa que vinga, é pecado que não apetece, porque não se inscreve nas correntes teatrais contemporâneas que tanto prazer tem dado (e continua a dar) aos poucos críticos da coisa teatral que em Portugal escrevem sobre este mister e porque remete para uma função e para um envolvimento (apenas) aparentemente facilitado.
Por outro lado, e é aqui que reside o mistério da vontade de montar este espectáculo, trata-se de um muito interessante texto construído por um grande nome da dramaturgia universal, construído com uma sageza invulgar e grande dinâmica, ou não tivesse sido ele escrito logo a seguir à decadência da commedia dell’arte, e matriculado nos novos ares que se respiravam como um exemplar precioso do auto-denominado Teatro Novo, de cujo manifesto Goldoni foi
um dos autores. Por outro lado, trata-se de um autor que a Companhia de Teatro de Braga ainda não representou e pode ser, (e estamos certos, será), um importante veículo na consolidação de públicos, de sustentação de novos espectadores que têm vindo a aproximar-se da produção da CTB e, não menos dispicienda, esta ‘’provocação’’ é, na actual prática teatral que a CTB tem vindo a trabalhar, um momento singular de lembrar alguns dos princípios em que se inscreve o jogo teatral nos seus ‘’gestos’’ mais simples e puros.
Por fim, (ou no princípio), é um desafio deveras interessante, este de trabalhar com as palavras organizadas segundo um determinado modo de pensar e que reflecte, como um espelho, uma sociedade num momento perfeitamente definido historicamente, e trabalhar esse material no sentido de reencontrar um outro discurso, mais de acordo com o que pensamos hoje e com os nossos sentidos século-vinte-e-um em estado de alerta, dos percursos que a cabeça conjuga com o corpo (e com o corpo-voz) no afã da interpretação, em harmonia estreita com o desejo literal primeiro, mas igualmente de acordo com este pensar e inquietação contemporâneos.
Este texto, sendo uma comédia de protagonista (a figura da estalajadeira, mesmo quando ausente, é omnipresente) assenta a sua estrutura num jogo de amor enunciado que se articula num quadrado apaixonado que se desenvolve a partir da manifestação comum (comum às quatro personagens que constituem os lados deste quadrado e que representam elas próprias ‘’qualidades’’ pessoais que importa equacionar: nobreza, dinheiro, misoginia e lealdade amorosa) da vontade do amor daquela mulher, mesmo que essa vontade seja resultado de considerandos e desideratos diferentes. E é essa diferença de argumentação, essa capacidade divergente, que torna mais interessante a situação. Uma outra ideia que interessa sobremaneira experimentar, é a possibilidade de focalizar o objecto teatral, ele mesmo, quer através da lógica do teatro que este texto veicula sobremaneira (este é um texto teatral, com uma construção absolutamente linear nesse sentido...) quer através da presença de duas actrizes/cómicas, quer relativamente ao jogo de espelhos que, como cunhas, vão sendo introduzidos (na realidade, os diversos pretendentes jogam/representam vontades distintas e a própria estalajadeira representa uma personagem que ela não é, ou, pelo menos, ela representa uma disponibilidade que já não tem. E nesse sentido, ela usa uma paleta de truques capazes de fazer corar de inveja o mais cabotino dos actores). As duas comediantes são, porque actrizes, capazes de representar o papel de senhoras, como seriam capazes (tivesse a situação necessidade disso) de representar o papel de criadas. É sobre a ‘’coisa’’ teatral que se centra a vontade de fazer em 2004 este texto. É nessa vontade de reflexão concentracionária que se matricula este impulso.
‘’De todas as comédias que até hoje escrevi, diria ser esta a mais moral, a mais útil, a mais instrutiva’’, escreveu Goldoni a propósito desta peça. O que vale ela no verão de 2004?
António Durães