THE CRAZY AND THE DEATH
STAGING AND DRAMATURGY
ANTÓNIO DURÃES
[2002]
BY
RAUL BRANDÃO
THE CRAZY AND THE DEATH
O Doido e a Morte (1923)
«It is a masterpiece and the highest moment of all the Brandonian theater» or «the most unique and brilliant drama of the century. XX Portuguese ».
Luís Francisco Rebello
O DOIDO E A MORTE
fictional interview, from director to director
Porque é que decidiu fazer este texto?
Um dia, andava à procura de textos que respondessem à vontade que tinha, e que continuo a ter, de reflectir sobre a justiça. Andava à procura de um universo que tratasse a justiça, que abordasse o conceito do julgamento do que é certo e do que é errado, que desse respostas nessa área, que levantasse problemas, que envolvesse questões de valores, onde estivesse representada a coisa do castigo, do crime, e por aí fora, quando a minha amiga Paula Vidigal me chamou a atenção para o teatro brandoniano e, particularmente, O Doido e a Morte como sendo uma possibilidade para discutir algumas dessas matérias (ler texto que escreveu para este caderno). Comecei por ler o prefácio do Luís Francisco Rebelo e fiquei siderado. Pensei: deixa cá ver o miolo do embrulho, depois do espectacular lançamento, mas na verdade, confesso que não fiquei especialmente apanhado. Era engraçada a ideia exposta, ok, mas sentia o texto muito vincado pelo tempo. Pensei que, mesmo passando um bom ferro de engomar sobre aquelas folhas, dificilmente as libertaria dos vincos amarelados que o tempo lhes deixou impressas. (Há uma espécie de marca de água neste texto, como aliás, sinto em quase todos os textos daquele tempo, dramáticos ou outros, que não é desvincável). Depois dessa primeira leitura, trabalhei o texto na ESMAE (Escola Superior de Música e das Artes do Espectáculo) com os alunos/actores Fernando Landeira, João Melo, Maria João, Nuno Meireles e Mariana Assunção e, aí sim, fiquei convencido. O Doido e a Morte, senti, é uma espécie de cebola, onde a seguir à primeira casca superficial se escondem outras casquinhas, e debaixo delas outras, e depois outras. E é em lágrimas que chegamos ao miolo, mas lágrimas inventadas, jogadas, porque a ideia de farsa (a natureza do texto é essa e não é rebatível) persiste, está inculcada nele, é «o texto». Ora isso é fantástico num texto dramático, por mais que os vincos perdurem.
E o que é que quis fazer, concretamente, neste trabalho. Que mensagem é que quis deixar?
Não quero deixar, ou fazer passar, mensagem nenhuma. Não tenho essa presunção. Gostaria que o teatro que eu faço fosse reconhecido como possuidor de uma determinada dinâmica, uma energia próprias e pouco mais. Pelo menos para já. E sobretudo, que os espectadores não se chateassem. Que se contasse, razoavelmente, uma história... percebe?, que depois fossem para casa com algumas imagens, com alguns momentos do espectáculo, e que pensassem ''o que é que eu fazia se fosse eu que estivesse lá?''. Que fossem ''felizmente incomodados''.
Mas no seu teatro, procura fazer passar algumas ideias, ou não?
Primeiro: eu não sou um artista de que se possa dizer que tem ''um teatro''... Não tenho cabedal para isso. Mas, claro, nos espectáculos que tenho feito, procuro aprofundar uma determinada linguagem. Há um léxico que eu gostaria de saber usar com correcção, de modo a que os espectáculos que eu dirijo tenham uma determinada identidade. Para isso contribuem muito, estou certo, as linguagens de um conjunto de artistas que regularmente, trabalhar comigo... É o caso do João Sotero e do Jorge Ribeiro. É o caso da Sílvia... E é o caso das pessoas com quem trabalho pela primeira vez, mas cujo trabalho já conhecia, a Susana e o Giovani...
Que ideias presidem a este O Doido e a Morte?
Olhe, primeiro quis fazer um espectáculo de palhaços, que se passasse numa pista de circo, um drama vital aos olhos dos espectadores, sem arena mas com magia. Li os personagens, lembro-me, como se de palhaços se tratassem, e o gabinete do governador fosse o enorme chapitô multicolor do circo. Mesmo que um deles se chame Milhões e se arme no homem mais rico de Portugal e o outro seja governador civil e autor teatral, esta parelha aparentemente não tem palhaço rico nem palhaço pobre. E depois há uma mulher, que como no circo real vem de chapéu em cone na cabeça e cara branca, e fato à Santa Rita Pintor, e sobrancelhas pintadas na testa, tocando trompete, que aqui é uma língua estranha e diferente das restantes, que utilizam o vinco do tempo para imitar a língua espanholada dos palhaços originais. Três personagens em busca do seu destino, como no Brecht, homens indígenas do País dos Homens das Cabeças Bicudas e do País dos Homens Cabeças Redondas, dois mundos e duas cabeças diferentes. Homens no limiar da humanidade. A farsa acaba aí e aí começa o espectáculo que quisemos fazer.
E depois do trabalho, é um jogo de palhaços que está lá?
Acho que sim. Mas não os palhaços que vemos amiúde no circo ou nos espectáculos de fim-de-ano na televisão. São outros palhaços. Acho que, terminado o trabalho, chegados ao objecto-espectáculo, os palhaços estão em nós quando observamos aqueles que quisemos que fossem os palhaços.
Não sei se percebi...
Se vir o espectáculo, provavelmente percebe...
Deixe-me fazer-lhe uma outra pergunta: li algures que a sua obsessão era falar do Tempo n' O Doido e a Morte.
Sim, o Tempo na duplicidade de conceitos que o texto dramático sugere. O tempo segundo as personagens. Os minutos e os segundos que medeiam aquela olhadela furtiva para o relógio e a explosão da bomba, no olhar do Doido; o tempo posterior para o qual o Governador escreve obras literárias. Dois conceitos diferentes. Mas as personagens é que apontam esse caminho. Para mim foi mais ou menos óbvio (eu até gosto desse tipo de materiais) que teria que lhe dar ênfase. E foi o que fiz.
O trabalho dos diversos criativos... Como é que se encaixou aqui?
É curioso fazer essa pergunta porque acho que nesta experiência se deu uma circunstância muito engraçada. É que neste espectáculo, porque precisava que o compositor estivesse mais perto de mim, contactei o Giovani que já conhecia, nomeadamente, porque foi ele quem gravou as bandas sonoras de dois espectáculos meus anteriores (o Arquitecto e Póquer na Jamaica) e que tinham música original do Fernando Lapa. Era muito importante para mim ter o músico à beira porque eu queria fazer crescer o espectáculo com a banda sonora, quase lado a lado. Aquela ideia dos palhaços (que em momentos anteriores assumia contornos muitíssimo mais claros) que devia estar à volta dos actores e não cimentado no jogo deles, serviu-me de impulso para o convite ao Giovani. Com isto, já se percebe, conseguiu-se uma grande agilidade e foi possível, sem grandes demoras, que se resolvessem uma série de problemas. A encenação fazia uma série de perguntas (e procurava as respostas, claro) e o universo sonoro, agilmente ao lado, tentava encontrar outras respostas. O mesmo se passa relativamente aos outros criativos, mas aí as cumplicidade já são diferentes. O João Sotero fez todos os meus espectáculos, excepto aqueles em que o ambiente é mais académico; o Jorge Ribeiro só não fez o primeiro, e um que realizei no Porto (muito bem iluminado pelo Nuno Meira, refira-se); a Sílvia já tinha trabalhado no Póquer; com a Susana já me tinha cruzado em várias alturas, quando ela estava ao serviço de companhias ou encenadores com quem fui trabalhando ao longo destes últimos dez anos, no mínimo... Portanto, são muitas as cumplicidades...
Li nos seus papeis, (acho que é uma mensagem da Susana para si) que de repente, foi muito curioso assistir a uma série de acontecimentos que o atiravam contra a natureza do espectáculo.
Ah, então foi você que me mexeu nos papeis... Bom, um dia a Susana (e o João também) ligaram-me para que eu ouvisse a rádio, porque um homem se tinha barricado com uma série de pessoas numa casa de banho dos estúdios da RTP, na 5 de Outubro, dizia que tinha uma bomba que ameaçava explodir se não lhe pagassem um montante qualquer. E era a história d'O Doido a repetir-se. E mais tarde - aí os telefonemas sucederam-se - aconteceram aquelas coisas todas nos EUA e a realidade ultrapassou por completo a ficção. Mesmo recentemente, ainda há a estória do bombista que levava explosivos escondidos nos sapatos. Claro está que a nossa realidade (no espectáculo) é um bocadinho mais complexa. O nosso bombista é um falso bombista. A bomba, realmente não existe. Mas ninguém sabe disso, senão ele. E provavelmente nem ele...
O Governador e a D. Aninhas, a sua esposa, no original do Brandão, têm filhos. Aqui decidiram brincar com a ideia.
Sim, aqui inventámos uns filhos especiais para o casal. Mas isso teve a ver com a natureza do elenco e com o aprofundar da dramaturgia. Já no original (que não foi alterado nem numa vírgula, importa dizer isso) me pareceu estranho que a esposa do governador se fosse embora daquela maneira, deixando o marido entregue à sua sorte. Imaginámos em Braga que esta mulher tinha de ter algo mais. Pensámos naquelas meninas que vêm para cá safar-se - e isso é legítimo, atenção - nem que para isso seja necessário forçar o casamento. O Governador é aqui o símbolo do poder terreno. Um degrau estável na ascensão da menina. E a menina pisa esse degrau, sobe a escada, ganha estatuto. Tão simplesmente quanto isso. Nesta relação - na relação tal como nós a desenhámos - não pode haver filhos e desconfio mesmo que só há sexo muito raramente e apenas como alimento circunstancial de um casamento interesseiro. Por isso inventámos os gatos, como sendo os filhos do casal, e que ela salva no final. Claro que tivemos que fazer alguma ginástica, mas não foi tão complicado como isso. Mais complicado foi fazer a fotografia da família, porque as gatas da foto (e que se chamam Beca, Pi e Joaninha) estavam extremamente nervosas - era a primeira vez que saíam de casa.
Entre o Fetichista e O Doido, que relação há?
Há tudo. É muito interessante ter chamado a atenção para isso, porque foi minha intenção fazer em alguns momentos, a convocação dessa personagem. Quem viu o espectáculo de que falou, perceberá, acho, esse gesto. Quem não viu, também não perde nada, lerá outras coisas. Sinto que há uma espécie de irmandade entre o Milhões de O Doido e Martin de O Fetichista. Há, na encenação, uma série de referências a essa outra personagem que me marcou. E no final, os ecos são indisfarsáveis. Mas entre um e outro espectáculo há um oceano de coisas. Sei, porém, que não estaria aqui (bem ou mal) se há não sei quantos anos não me tivesse cruzado com Martin. Há uns tempos conversei com Tournier, o autor de O Fetichista, e disse-lhe: ''eu sou o que fez o espectáculo em Portugal''... E ele respondeu: ''ah!, então o maluco é você... e sobreviveu''...
Pelos vistos.